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A invasão da Ucrânia pela Rússia a 24 de fevereiro originou uma crise de refugiados sem precedentes na Europa desde a 2ª guerra mundial e está a levar à destruição de um grande país, colocando em situação extrema a sua população.

Perante esta situação, uma onda de solidariedade atravessa o mundo Ocidental. Os cidadãos europeus mobilizam-se aos milhões para juntar roupa, medicamentos e mantimentos e enviar para a Ucrânia. Comitivas auto-organizadas vão buscar refugiados à fronteira para os trazer para os diferentes países. As administrações das grandes empresas, perante esta situação e a pressão dos seus empregados e clientes, mobilizam fundos para programas especiais de apoio à Ucrânia. Governos e municípios apressam-se a agilizar a integração dos refugiados ucranianos. Parece que nada é mais urgente e importante que ajudar a Ucrânia e a sua população. Onde já vimos este filme? Vimos nos incêndios de Pedrógão, embora numa escala nacional e não global. Vemos sempre que há uma calamidade em grande escala, seja ela natural ou provocada pela Humanidade.

O problema é que na ânsia de tentar ajudar, para nos sentirmos melhor perante uma situação que nos aflige, arriscamo-nos a ser ineficazes e mesmo a destruir valor. Porque quando todo o mundo está a fazer uma coisa (enviar mantimentos para a Ucrânia por exemplo) deixa de ser útil e valioso fazer essa mesma coisa pois há demasiada oferta e geralmente uma insuficiente procura ou pouca capacidade de distribuição no terreno dessa oferta de forma eficaz. A ajuda mais inteligente é aquela que é focada e alavanca as capacidades e competências no terreno ou aquela ajuda que pensa diferente e aborda problemas que ninguém está a ver. O importante na nossa ação perante uma calamidade não é fazer o que os outros fazem para que nos sintamos úteis, mas sim conseguir criar valor com uma ação eficiente e eficaz. Quais são então algumas boas práticas a seguir em situações de calamidade?

- Princípio da Adicionalidade: tudo o que decidirmos fazer para ajudar deve ser em acréscimo ao que já fazemos e não em substituição. Se vou dar um donativo, que seja dinheiro novo do meu orçamento familiar ou corporativo e não em substituição da doação à IPSS ou do programa de responsabilidade social que eu fazia todos os anos e agora, de repente, deixo de fazer. Se vou dar o meu tempo, que não seja à custa das pessoas que acompanhava em voluntariado e que agora de repente largaria para ter tempo para recolher alimentos para a Ucrânia. A continuidade do nosso apoio em tempo e dinheiro é fundamental para a prosperidade dessas organizações e pessoas. Muitas vezes o acorrer à calamidade abafa ou desvia tudo o resto, causando uma enorme destruição de valor.

- Lógica da competência: devemos apostar em quem já sabe fazer e não em quem quer ajudar. Organizações como a Cruz Vermelha Internacional, os Médicos sem Fronteiras e a Agência das Nações Unidas para os Refugiados, têm décadas de experiência no apoio a crises humanitárias. Têm também recursos humanos e materiais que podem destacar com rapidez para a frente da calamidade. Uma doação em dinheiro a essas entidades é muito mais eficaz do que doar géneros para enviar mais um contentor de roupa e comida para a Ucrânia. É que com uma doação em dinheiro essas entidades podem comprar roupa e comida localmente na fronteira e enviar de forma eficiente e eficaz para quem precisa, promovendo a economia local. Doações maciças de bens externos têm uma pegada ecológica grande, são muitas vezes desperdiçadas, e outras vezes destroem as economias locais ou vizinhas dos territórios em calamidade.

- Aproveitar a base instalada: devemos ajudar quem já está implantado no terreno para acudir ao problema que se quer resolver. Mais vale apoiar uma organização social na fronteira da Polónia com a Ucrânia ou trabalhar com uma IPSS nacional que localmente acolhe e ajuda refugiados, do que tentar montar estruturas novas e amadoras, sem experiência de terreno ou enviar missões auto-organizadas à fronteira que podem não ter conhecimento do contexto e das dificuldades que vão enfrentar. Mais vale confiar em entidades municipais que têm décadas de experiência na gestão da rede social do seu concelho e promovem a articulação de organizações para atacar problemas sociais de forma integrada, do que tentar duplicar atividades e papéis. As situações de crise exigem a montagem ou aumento rápido da capacidade de intervenção, e esse papel é mais bem desempenhado por quem tem experiência e base instalada no terreno.

- Aplicar inovação social: quando todos fazem a mesma coisa, a ajuda mais eficaz e inteligente é encontrar um problema negligenciado em que poucos estão a pensar e desenvolver uma solução inovadora para esse problema. Por exemplo, o mundo Ocidental está mobilizado para apoiar e acolher refugiados ucranianos. Muito bem. Mas quem está a pensar em acolher refugiados russos? Ninguém. Mas se calhar há aqui uma necessidade e oportunidade. Há milhares de russos que não se revêm nesta guerra e percebem bem que o seu país, em qualquer dos cenários, já perdeu. Já perdeu porque está cada vez mais isolado da Economia mundial e irá enfrentar uma situação política interna muito complicada. Milhares de empreendedores e gestores russos, em particular os mais orientados para o mercado internacional, estão a fugir do país. Por exemplo, uma empreendedora russa que conheci recentemente e que trabalha na área do acesso online à saúde mental para trabalhadores de empresas russas, confidenciou-me que, da rede de quase 375 empreendedores sociais de Moscovo e São Petersburgo a que ela pertence, já 90% decidiram em duas semanas sair do país por não concordarem com as ações do regime e perceberem que não há forma legítima de conseguir ser empreendedor ou gestor na Rússia atual. São patriotas que de coração pesado abandonam o seu país sem um plano ou destino claro. É um dos maiores êxodos de talento da história da Rússia. Para onde vai esta geração de russos? Aqueles que podem vão para Israel ou Dubai. Muitos vão para a Turquia, outros para a Geórgia. Se lhe fosse dada essa possibilidade, muitos viriam para a Europa, trazendo os seus recursos, talento e capacidade de empreender. Se a Europa e Portugal quisessem adotar uma política inteligente, estariam a criar uma via verde para aceitar refugiados russos de talento, a par com o apoio aos refugiados ucranianos.

Os cidadãos russos não devem ser culpados pelos crimes e agressões do regime. Pelo contrário, eles estão também, embora de forma indireta e numa escala diferente, a sofrer as consequências das agressões do regime russo, perdendo as suas empresas e forma de vida e tendo de emigrar. Enquanto sociedade, devemos perceber esta diferença e ser também generosos no acolhimento aos refugiados russos.

E, ao cumprir a fundamental responsabilidade de ajudar os Ucranianos, temos o dever de o fazer da forma mais eficaz possível para melhorar a sua situação, e não da forma que nos faz sentir mais aliviados na nossa consciência.

 

Filipe Santos, Dean da CATÓLICA-LISBON