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Será que, 48 anos depois, os valores de Abril ainda estão vivos e atuantes? Para responder a esta pergunta precisamos de saber quais são os valores de Abril, e isso é mais difícil do que parece. Ou talvez não.
A revolução de 25 de Abril de 1974 é um facto histórico decisivo de que todos os portugueses contemporâneos somos herdeiros. É verdade que, como acontece sempre nas coisas humanas, alguns a fizeram, outros se apropriaram dela e alguns ainda hoje se consideram seus donos. Se enveredarmos por esse caminho das ideologias e opiniões, espera-nos a confusão, porque as coisas mais variadas passam por valores de Abril. Muitos projetaram nesse movimento os seus próprios sonhos, ambições, medos e raivas, querendo ver nele as realidades mais variadas. Aquilo que ninguém pode negar, porém, é que a revolução pertence ao povo, em nome de quem foi feita. Só a partir dele as coisas ganham sentido.
Ora os valores populares de Abril são poucos, mas sólidos. Antes de mais nada, essa revolução representou o repúdio de um regime autoritário e fechado, substituindo-o por um sistema aberto, livre e integrado no mundo livre. Esse é o seu valor principal e ninguém pode negar que se mantém íntegro passados todos estes anos. Mais importante ainda, a ordem resultante desse movimento constitui a mais duradoura e estável de todas as experiências democráticas nacionais.
Em 1974, se alguém olhasse para trás, teria de concluir que democracia era algo que nunca realmente funcionara nestas paragens. Do regabofe liberal à paz corrupta da regeneração e ao tumulto republicano, todas as tentativas de funcionar num regime eletivo tinham falhado fragorosamente em Portugal. Hoje, o mesmo exercício feito em 2022 chega à conclusão oposta. Não só somos capazes de nos governar num sistema livre, mas tivemos estabilidade e ganhos sociais incomparáveis com os de qualquer época anterior.
Os primeiros anos após a revolução, 1974 e 1975, ainda foram voláteis como as democracias anteriores, com vários golpes, intentonas e “inventonas”, como então se dizia. Mas quando a nova Constituição entrou em vigor, a 25 de Abril de 1976, as coisas já estavam bastante calmas, e assim se mantiveram nos últimos 46 anos. Não encontramos nenhum outro período de quatro décadas e meia, sobretudo em democracia, em que não se tenham verificado revoltas, revoluções e guerras em Portugal.
Alguns argumentam que a instabilidade governativa e sobretudo as emergências financeiras, de que existiram três nesse período, desmentem essa estabilidade. No entanto essa posição carece de solidez. Claro que um sistema livre e democrático é menos estável que um ditatorial, onde a calma é imposta à força. Mas a verdade é que, por muitas críticas que se façam, a qualidade da nossa liderança e mesmo da generalidade da classe política é muito superior à das experiências liberal e republicana. Os defeitos que lhe podemos apontar, e que são inegáveis, são, no entanto, semelhantes aos que se veem na generalidade dos nossos parceiros, e muito menores que em alguns deles, como Itália e Grécia. Portugal provou que sabe viver em democracia, e isso é uma grande conquista de Abril.
A revolução pretendia democracia e hoje temos democracia. Mas também temos mais do dobro do nível de vida, uma taxa de pobreza cerca de metade, uma esperança de vida dez anos superior e uma mortalidade infantil inferior a um décimo da que era então. Apesar de todos os resmungos e protestos, que abundam hoje como abundaram sempre, não podemos negar que somos um país moderno, respeitado, integrado e equilibrado. Claro que poderia ser muito melhor, e existem problemas teimosamente persistentes. No entanto, temos de admitir que Portugal não falhou Abril.
Mas esta afirmação tem de ser repetida todos os dias. Nunca se pode esquecer que estas conquistas nunca estão garantidas, e cada geração deve reafirmá-las de raiz. Abril provou que somos capazes, mas temos de o merecer em Maio, Junho e todos os meses.
João César das Neves, Professor na CATÓLICA-LISBON. In Link to Leaders.